Será uma
bênção se São Paulo de fato conseguir voltar a conviver com seus rios
Washington Novaes (wlrnovaes@uol.com.br) é jornalista.
Está provocando controvérsia o projeto da Secretaria do Verde e do Meio
Ambiente de São Paulo de "renaturalizar os
córregos" da cidade, como parte de um projeto maior de desimpermeabilizar as bacias hidrográficas e encontrar
caminhos melhores que os caros piscinões para
evitar inundações na área urbana.
Não será fácil a tarefa. Mas é um bom começo para enfrentar a grave questão
da impermeabilização do solo urbano essa tentativa de restabelecer uma
"relação amigável entre a cidade e o regime natural das águas" e de
"redescobrir os rios da cidade de São Paulo".
Isso inclui "renaturalizá-los" onde haja
"condições para a inserção das águas na paisagem urbana e na vida da
cidade".
Pretende-se começar pelas bacias do Rio Anhangabaú e do Riacho Ipiranga - o
que implica renaturalizar o Córrego Itororó, hoje
sob a Avenida 23 de Maio, utilizando o canteiro central; e "tratar paisagisticamente" as avenidas marginais do Ipiranga
para criar "o parque das margens plácidas, que deverá unir e ampliar o
Jardim Botânico/Parque da Independência ao Parque
da Independência, ao longo do fundo do vale".
Argumentos levantados contra o projeto dizem tratar-se de um atentado à
lógica urbana, que exigirá, em seguida, respeitar a legislação que cria áreas
obrigatórias de proteção às margens dos mananciais (e isso encareceria o
custo de construções).
Que custará caro aos contribuintes. E que poderá criar problemas de saúde
pública, trazendo à tona o lodo de esgotos, roedores, insetos, bactérias e
vírus.
Há muitos fatores a considerar. Nos 1509 quilômetros quadrados do Município
de São Paulo correm rios e córregos por cerca de 3.200 quilômetros.
Mas a cidade não convive mais com eles. Estão quase todos sob o solo
altamente impermeabilizado (94,2% na Bela Vista,
88,5% na República, por exemplo).
As águas de chuvas não têm onde infiltrar-se nem
onde ser retidas. Têm de correr para os fundos de vales, onde rios assoreados
não comportam nem seu próprio fluxo, quanto mais a carga adicional. Enchentes
são inevitáveis.
Não custa repetir cálculo feito pelo professor Ladislau
Dowbor: se uma chuva de 100 milímetros, cada vez
mais freqüente no verão, cair sobre os 1.500 quilômetros quadrados do
Município, serão 150 milhões de toneladas de água.
Que perderam a capacidade originária de escoar-se (o Tamanduateí
foi retificado em 1914 e canalizado sob novo leito; o Anhangabaú foi
retificado em 1896; na década de 1930 iniciou-se uma política de ocupação dos
fundos de vales com grandes obras viárias; na década de 1940 começou a
retificação do Tietê; etc.).
Hoje, quem estuda as causas de inundações na cidade aponta, entre outras, a
ocupação das várzeas (planícies de inundação natural), impermeabilização do
solo urbano, redução do tempo de retenção das águas pluviais, aumento da
velocidade das águas nos cursos canalizados (aumentando rapidamente a carga
nos rios receptores), redução da cobertura vegetal (que ajuda a reter água).
E quem consultar o Atlas Ambiental do Município verá que a densa ocupação
urbana forma "ilhas de calor", de alta temperatura (até oito graus mais altas que nas regiões mais altas e
vegetadas da Serra do Mar), nas áreas mais industrializadas, de maior
densidade de tráfego; elas atraem as chamadas "chuvas de convexão", fortes pancadas de água que em pouco
tempo descarregam enorme massa líquida que não tem onde infiltrar-se nem para
onde escoar-se e gera inundações.
Com isso, chove menos nas regiões de nascentes e mananciais, onde elas seriam
mais necessárias.
As novas condições influem inclusive na distribuição temporal das chuvas:
nessas "ilhas de calor" chove muito mais de terça a sexta-feira -
quando geram problemas maiores - do que no sábado, domingo e segunda-feira. Quem
duvidar deve consultar os mapas do clima daquele atlas.
Quem quiser pode também tentar informar-se do que está fazendo a Europa, por
exemplo. Já há alguns anos, os ministros do Meio Ambiente da bacia do Reno
decidiram "deixar o rio em paz" - exatamente pelas mesmas razões
que estão levando São Paulo a repensar sua relação com os rios.
E após as grandes enchentes de 2003/2004, com muitas vítimas e enormes
prejuízos, a Alemanha começou a pôr em prática um grande projeto de
desocupação das planícies de inundação na bacia do Reno, para devolvê-lo
"ao seu fluxo natural" - e isso inclui eliminar barragens,
retificações, canalizações, ocupação humana de áreas.
E enquanto não há recursos para retirar todos os ocupantes das planícies de
inundação, proibiu-se que utilizem o pavimento térreo das edificações ou ali
mantenham depósitos de gás ou combustíveis. Também a Suíça está executando um
projeto dessa natureza.
Talvez ajude a entender o problema paulistano lembrar que o Aeroporto de
Congonhas começou a ser implantado depois que uma grande enchente inundou o
antigo aeroporto da cidade, o Campo de Marte, que fica a considerável
distância do Rio Tietê, mas na planície de inundação natural.
Mas em seguida se permitiu um processo de ocupação intensa dessa planície e
se chegou à construção das avenidas marginais, com intenso fluxo de veículos,
à beira de um rio assoreado por esgotos e pelos sedimentos carreados pelos
afluentes retificados, canalizados, sepultados sob o asfalto.
Deu no que deu, com as inundações atormentando a cidade e levando ao
aprofundamento da calha do rio - que vai aumentar a quantidade e a velocidade
das águas nas áreas a jusante.
Será uma bênção se São Paulo de fato conseguir voltar a conviver com seus
rios.
(O Estado de SP, 2/12)
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