Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”

Divulgado pelo Jornal da Ciência e-mail 2907, de 02 de Dezembro de 2005.  

Para deixarmos os rios em paz, artigo de Washington Novaes

 

 

Será uma bênção se São Paulo de fato conseguir voltar a conviver com seus rios

Washington Novaes (wlrnovaes@uol.com.br) é jornalista.


Está provocando controvérsia o projeto da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo de "renaturalizar os córregos" da cidade, como parte de um projeto maior de desimpermeabilizar as bacias hidrográficas e encontrar caminhos melhores que os caros piscinões para evitar inundações na área urbana.

Não será fácil a tarefa. Mas é um bom começo para enfrentar a grave questão da impermeabilização do solo urbano essa tentativa de restabelecer uma "relação amigável entre a cidade e o regime natural das águas" e de "redescobrir os rios da cidade de São Paulo".

Isso inclui "renaturalizá-los" onde haja "condições para a inserção das águas na paisagem urbana e na vida da cidade".

Pretende-se começar pelas bacias do Rio Anhangabaú e do Riacho Ipiranga - o que implica renaturalizar o Córrego Itororó, hoje sob a Avenida 23 de Maio, utilizando o canteiro central; e "tratar paisagisticamente" as avenidas marginais do Ipiranga para criar "o parque das margens plácidas, que deverá unir e ampliar o Jardim Botânico/Parque da Independência ao Parque da Independência, ao longo do fundo do vale".

Argumentos levantados contra o projeto dizem tratar-se de um atentado à lógica urbana, que exigirá, em seguida, respeitar a legislação que cria áreas obrigatórias de proteção às margens dos mananciais (e isso encareceria o custo de construções).

Que custará caro aos contribuintes. E que poderá criar problemas de saúde pública, trazendo à tona o lodo de esgotos, roedores, insetos, bactérias e vírus.

Há muitos fatores a considerar. Nos 1509 quilômetros quadrados do Município de São Paulo correm rios e córregos por cerca de 3.200 quilômetros.

Mas a cidade não convive mais com eles. Estão quase todos sob o solo altamente impermeabilizado (94,2% na Bela Vista, 88,5% na República, por exemplo).

As águas de chuvas não têm onde infiltrar-se nem onde ser retidas. Têm de correr para os fundos de vales, onde rios assoreados não comportam nem seu próprio fluxo, quanto mais a carga adicional. Enchentes são inevitáveis.

Não custa repetir cálculo feito pelo professor Ladislau Dowbor: se uma chuva de 100 milímetros, cada vez mais freqüente no verão, cair sobre os 1.500 quilômetros quadrados do Município, serão 150 milhões de toneladas de água.

Que perderam a capacidade originária de escoar-se (o Tamanduateí foi retificado em 1914 e canalizado sob novo leito; o Anhangabaú foi retificado em 1896; na década de 1930 iniciou-se uma política de ocupação dos fundos de vales com grandes obras viárias; na década de 1940 começou a retificação do Tietê; etc.).

Hoje, quem estuda as causas de inundações na cidade aponta, entre outras, a ocupação das várzeas (planícies de inundação natural), impermeabilização do solo urbano, redução do tempo de retenção das águas pluviais, aumento da velocidade das águas nos cursos canalizados (aumentando rapidamente a carga nos rios receptores), redução da cobertura vegetal (que ajuda a reter água).

E quem consultar o Atlas Ambiental do Município verá que a densa ocupação urbana forma "ilhas de calor", de alta temperatura (até oito graus mais altas que nas regiões mais altas e vegetadas da Serra do Mar), nas áreas mais industrializadas, de maior densidade de tráfego; elas atraem as chamadas "chuvas de convexão", fortes pancadas de água que em pouco tempo descarregam enorme massa líquida que não tem onde infiltrar-se nem para onde escoar-se e gera inundações.

Com isso, chove menos nas regiões de nascentes e mananciais, onde elas seriam mais necessárias.

As novas condições influem inclusive na distribuição temporal das chuvas: nessas "ilhas de calor" chove muito mais de terça a sexta-feira - quando geram problemas maiores - do que no sábado, domingo e segunda-feira. Quem duvidar deve consultar os mapas do clima daquele atlas.

Quem quiser pode também tentar informar-se do que está fazendo a Europa, por exemplo. Já há alguns anos, os ministros do Meio Ambiente da bacia do Reno decidiram "deixar o rio em paz" - exatamente pelas mesmas razões que estão levando São Paulo a repensar sua relação com os rios.

E após as grandes enchentes de 2003/2004, com muitas vítimas e enormes prejuízos, a Alemanha começou a pôr em prática um grande projeto de desocupação das planícies de inundação na bacia do Reno, para devolvê-lo "ao seu fluxo natural" - e isso inclui eliminar barragens, retificações, canalizações, ocupação humana de áreas.

E enquanto não há recursos para retirar todos os ocupantes das planícies de inundação, proibiu-se que utilizem o pavimento térreo das edificações ou ali mantenham depósitos de gás ou combustíveis. Também a Suíça está executando um projeto dessa natureza.

Talvez ajude a entender o problema paulistano lembrar que o Aeroporto de Congonhas começou a ser implantado depois que uma grande enchente inundou o antigo aeroporto da cidade, o Campo de Marte, que fica a considerável distância do Rio Tietê, mas na planície de inundação natural.

Mas em seguida se permitiu um processo de ocupação intensa dessa planície e se chegou à construção das avenidas marginais, com intenso fluxo de veículos, à beira de um rio assoreado por esgotos e pelos sedimentos carreados pelos afluentes retificados, canalizados, sepultados sob o asfalto.

Deu no que deu, com as inundações atormentando a cidade e levando ao aprofundamento da calha do rio - que vai aumentar a quantidade e a velocidade das águas nas áreas a jusante.

Será uma bênção se São Paulo de fato conseguir voltar a conviver com seus rios.
(O Estado de SP, 2/12)