A mulher com os pés sobre a lua crescente
 

N.S. Aparecida Guadalupe
Virgem do Apocalipse
Lua crescente
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        A mulher com os pés sobre a lua é uma  imagem que teve uma forte presença na arte em algum momento e depois saiu de cena. Interessa-me investigar o ambiente que a circunda no seu momento de pico, o século XVIII, nas américas, em busca de razões que expliquem essa escolha. Como certos símbolos  tem seus retornos, é interessante acompanhar a  crescente popularidade de certa Nossa Senhora Desatadora de Nós, sua mais recente personificação. Mas, dentre tantas formas, por que essa?
        Por ser parte de algum processo de meu próprio inconsciente, a escolha não tem explicação clara. Faz parte das minhas significativas insignificâncias . Mas tem precedentes.  Continuo ateu, mas tenho lá minhas ligações com a virgem-deusa-mãe. Em algum momento de meus anos 30 eu tentava aprender algum mantra, quando percebi que a Ave Maria era meu mantra natural. Foi a primeira oração que aprendi, repetida toda noite a partir dos... 7 anos? Depois, mais 6 anos de colégio marista onde, nos meses de Maio, dezenas de garotos rezávamos o terço andando ao redor do pátio interno do Arquidiocesano. A ligação se consolidou quando eu tive um sonho, em 1993, daqueles em que a gente tem a incrível sensação de voar, em frente a uma imagem de Nossa Senhora. A partir dali, enfrento insônias e surtos de stress repetindo o mantra.
      Quando interessei-me pela arte barroca (por causa das espirais, outro episódio de minha investigação das Significativas Insignificâncias) buscava nas leituras identificar alguns padrões de repetição que ajudassem a "ler" aquela overdose de formas. Foi meu amigo Murilo Lisboa quem me mostrou que havia um padrão de repetição nas diferentes imagens de Nossas Senhoras. Cada uma delas tem uma marca identificadora: o terço na mão da "do Rosário", as facas no coração da "das Dores", a lua nos pés da "Imaculada Conceição", entre tantas outras. A insólita beleza da mulher com a lua a seus pés interessou-me.    

conceicao no teto
Quem por ventura já examinou as representações do sagrado na religião católica  nota a força do culto de Maria, a Mãe de Deus, Nossa Senhora, a Virgem Maria. O culto é tão forte que os protestantes o criticavam, chamando de "marianismo".  Os católicos, por sua vez,  têm um tema de estudo que é a mariologia.

Os vínculos desse culto com os vários cultos mediterrâneos de deusas é bem forte. Para focalizar um símbolo, a virgindade, muitas deusas gregas eram virgens. Palas Atena e Artemis são bons exemplos, com denominações e características um pouco diferentes de cidade a cidade..

As imagens de Nossa Senhora também carregam essa variabilidade. O tema desta página é uma das suas representações, a mulher com os pés sobre a lua crescente, que recebe o nome de Nossa Senhora da Conceição.  Essa  é  a mais frequente  denominação de Nossa Senhora no Brasil . Algumas das mais belas imagens barrocas brasileiras  usam essa representação. O teto da Igreja de São Francisco (foto ao lado), em Ouro Preto, atribuído a Manoel Athaíde, mostra a lua numa posição incomum, mas seguramente associada a posição em que a vemos, no teto da igreja.


      A própria imagem da Padroeira do Brasil,  Nossa Senhora Aparecida, é desse tipo. Seu nome completo é N. Sa. da Conceição Aparecida no Rio Paraíba.  Normalmente não vemos a presença da lua a seus pés devido ao pesado manto azul que a cobre, e muitas das imagens comercializadas não mostram a lua a seus pés, mas ela lá está. A imagem encontrada numa pescaria em 1717 foi logo identificada como de N.S. da Conceição, pela lua.
      Esse manto que a cobre lhe dá mais dignidade, pois a imagem é de cor marron, pouco chamativa. Mas o manto pode ter outra função. A tal Lua a seus Pés tem a incômoda forma de dois chifres. Não é fácil resolver tridimensionalmente a imagem da lua crescente a seus pés. Uma Lua Cheia é fácil, uma esfera, mas qual é a forma tridimensional da Lua Crescente? Dependendo da habilidade do escultor, fica-nos a impressão dos chifres...
     Ainda assim, a imagem da Aparecida, sem seu manto, é mais bonita. E reforça o problema: qual o significado dessa imagem da mulher com os pés sobre a lua?
    




      A foto ao lado é de uma reprodução vendida nos postos de gasolina nas proximidades do Santuário.


aparecida2.jpg


A origem dessa representação está ligada àquele mais espantoso texto do Novo Testamento, o Apocalipse de São João. Uma página da Arquidiocese do Rio de Janeiro vai fundo nessa discussão. Lá no capítulo 12 lê-se:

  "Depois apareceu no céu um grande sinal: Uma mulher vestida de sol, e a lua debaixo de seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre sua cabeça; e, estando grávida, clamava com as dores do parto e sofria os tormentos para dar à luz" .

Essa, pois, é a origem da imagem. É a representação da idéia descrita no Apocalipse. Claro que cabe a pergunta: e João, tirou isso de onde?
Era essa imagem usada em outra circunstância, naquele momento, no Oriente Médio?
Estudiosos afirmam que o Apocalipse trata dos riscos corridos pelos cristãos no fim do primeiro século, que devem repercutir numa crise de fé, e é uma exortação à resistência (Enc. Britannica). Tal crise de fé parece exigir muitas visões mágicas para se preservar .

               Mas quando essa "imagem literária"  se transforma numa representação plástica?  Passei vários meses de 2003 acalentando uma hipótese que depois mostrou-se equivocada:  a mais antiga representação que encontrei de Maria com os pés sobre a lua parecia ser de 1531, é uma "imagem milagrosa", uma imagem que surge pintada na roupa de um mexicano chamado Cuautitlan, a famosa Virgem de Guadalupe. 
             A história é muito boa. Apenas 10 anos após a conquista do México por Cortez, naquela história em que uns poucos espanhóis a cavalo venceram milhares de aztecas e espalharam doenças que mataram milhões, a cidade de Tenotchitlán foi destruída e suas pedras usadas na construção da Cidade do México, que já tinha suas igrejas, seu bispo franciscano. A evangelização dos locais vai à toda. Nesse momento histórico, conta a história que a Virgem aparece a um índio mexicano e lhe pede que convença o bispo a construir uma igreja num morro, nas proximidades da cidade. Na terceira tentativa de convencimento,  o índio recolheu em sua roupa umas flores muito especiais e, quando a abriu para mostrar ao bispo, apareceu a imagem ao lado, pintada em sua túnica. O bispo reconhece o milagre nessa pintura de uma mulher com um manto estrelado, de mãos postas, de pé sobre a lua crescente, inserida numa concha de raios, sobre um anjo alado. Pouco depois foi iniciada a construção da igreja. O índio, mais conhecido pelo seu nome espanhol Juan Diego, foi canonizado em julho de 2002.
            Consta que essa história foi registrada ainda no século XVI,  na língua Nahuatl, por um índio chamado Antonio Valeriano. Esse texto, conhecido como Nican Mopohua, ou Huei Tlamahuitzoltica, está perdido. Há quem diga que foi levado por um general americano. Conhece-se uma cópia de 1649, também em Nahuatl, feita por Luis Lasso de la Vega. Nesse texto de 1649 , a palavra Imaculada é mencionada uma vez.


imagem

A Mulher Vestida de Sol

Meses buscando referências sobre a Mulher com os Pés sobre a Lua e, de repente, encontro uma página sobre a Mulher Vestida de Sol, exatamente sobre o mesmo tema! Coisas que só a Internet permite descobrir.

Eu vinha buscando imagens da Conceição, com a tese de que a Guadalupe seria a primeira, que essa seria uma imagem "americana" do dogma da Imaculada Conceição, e encontrei vários sites de Mariologia. Repetia a pergunta onde podia, e um padre da Universidade de Dayton disse que a imagem da Mulher com os Pés sobre a Lua seria do século XV (e, portanto, anterior a Guadalupe), mas não tinha as evidências. Mencionou que uma delas seria de  Erfurt, e eu saí a campo. Esbarrei na página de um fotógrafo americano, 
Gary Regester, que reuniu os ícones abaixo.

Ele juntou essas imagens para orientar uma pintora da Ilha de Patmos, na Grécia, a pintar um quadro que ele queria. O vínculo de Gary é com São João, pois ele conheceu a pintora durante as festividades dos  1900 anos  da  passagem de  S. João por aquela ilha.  Numa caverna daquela ilha,  João escreveu o Apocalipse.

                                                                                                     
Confirmando a opinião do padre de Dayton, Gary mostrou duas imagens do século XV já com a Mulher com os Pés sobre a Lua. Aliás, a semehança com a Guadalupe é muito forte.
Outra coisa interessante é que não são chamadas de N.Sa. da Conceição, ambas são explicitamente "Virgens do Apocalipse".

A primeira imagem é a Virgem do Apocalipse, de
Meister des Hausbuches von Wolfegg, Museum Unterlinden, Colmar;

A segunda é uma Virgem do Apocalipse,   Workshop of the Master of the A
msterdam Cabinet , Germany, 1480-90, The Cloisters, Metropolitan Museum of Art, NYC;



É curiosa a solução adotada para traduzir a expressão "vestida de Sol": uma elipse cheia de raios, que também marca a gravura de Dürer e a imagem de Guadalupe.

Qual o motivo da súbita moda de pintar essa virgem? Ainda não temos essa resposta, mas podemos lembrar que Hyronimus Bosch estava pintando o Jardim das Delícias exatamente naquele momento (1480). Era um momento de arriscar representar o irrepresentável. O apocalipse devia ser um belo desafio.

Imaculada Conceição
.
E como ocorre a identificação Imaculada Conceição-Virgem do Apocalipse? .

A Enciclopédia Católica inglesa  investe muitas páginas na  discussão da evolução histórica do dogma da Imaculada Conceição. A expressão Imaculada Concepção de Maria não se refere à concepção de Jesus por Maria. Refere-se ao conceito de que a Mãe de Deus não poderia ter sido concebida com o pecado original e, portanto, sua concepção, no ventre de sua mãe Ana, ocorreu sem pecado. Chegou-se a discutir se a suspensão do Pecado Original, esse que todos os humanos carregam desde Adão, teria ocorrido antes ou depois da inseminação física, propriamente dita. (veja em http://www.newadvent.org/cathen/07674d.htm   ).

O assunto esteve em discussão por muitos séculos e, no final do século XV várias reuniões foram realizadas para discuti-lo. Torquemada, aquele posteriormente famoso por sua ação feroz na Inquisição, escreveu um Relatório em 1473 defendendo o conceito.

Ainda assim, falta a ligação entre a imagem e o conceito. Vimos que a imagem foi criada sem esse vínculo. Para viabilizar  Há quem diga que, como não há símbolo capaz de representar esse mistério da Imaculada Conceição, era necessário buscar uma imagem dissociada. E lá estava a Virgem do Apocalipse entrando na moda, vinda do Norte!
 




Duas gravuras de Albrecht Dürer, no início do século XVI,  também colocam
a Mulher sobre a Lua e também não a chamam de Conceição.

A primeira é a "Virgem sobre o Crescente com uma coroa de estrelas.   The Albrecht Duerer, 1508". Gary comenta "note o detalhe "homem na lua" , que não identifiquei.

A segunda é "Madona aparece para S. João",  Albrecht Duerer, 1511; 


lujan original


E os Espanhóis, donos dos Países Baixos, importando Bosch e outros. É, o tema merece uma visita ao Museu do Prado. Nossa Senhora da Conceição torna-se a padroeira de Portugal, do Brasil e de muitos países da América Latina. A figura ao lado é a N.S. de Lujan, padroeira da Argentina. procure bem e encontrarás os "chifrinhos"da lua.

Alguns quadros espanhóis do século XVI retratam N.Sa. da Conceição sem lua a seus pés.




outra imagem da Virgem do Apocalipse, agora em relevo, num ícone de um 
katholikon de São João Evangelista, na Fortaleza de são João na ilha de Patmos. Essa tem até o dragão.



William Blake, poeta e ilustrador ingles do século XIX, um romântico de carteirinha, desenhor a Mulher e o Dragão vermelho, mas com a lua a seus pés! Woman and the Red Dragon, William Blake, 1805, National Gallery, D.C.;

Ao lado, outra imagem do norte europeu, também do século XV.  The Glorification of the Virgin, Geertgen tot Sint Jans, ca. 1480, Museum Boymans-van Beuningen, Rotterdam;



É verdade que existem imagens mais antigas associando a Mulher e a Lua, mas a Mulher sobre a Lua parece mesmo surgida no século XV.

Venus de Laussel, Dordogne, 20,000 BC, Musee d'Aquitaine, Bordeaux, France;

 Sumerian "Lilith", ca. 2000 BC, British Museum;

O culto de Isis:
Isis é uma deusa egípcia associada à morte e ressurreiçào de osíris. Em 155dC, ou seja, muito próximo do tempo da redação do Apocalipse, Lucio Apuleio, um sacerdote de Isis, descreve um sonho em que Isis nasce com a lua, do mar. Nesse texto Isis é chamada de Rainha do Céu, da Terra e do Submundo. naquele momento, o culto de Isis disputava espaço com o cristianismo. (Enc. Grolier).


 Female Figure of Late Spedos Type, Early Cycladic II, ca. 2400 BC, JP Getty Museum, Los Angeles;

  Artemis and her lion, c. fifth century BC, British Museum;

3 Die schoene Artemis from the Temple of Artemis, Ephesus, Selchuk Museum, Turkey;

Referencias mencionadas por Gary:
"The Myth of the Goddess", by Anne Baring and Jules Cashford, Viking (Penguin) 1991;
"The Civilization of the Goddess", by Marija Gimbutas, Harper Collins, 1991
"The Language of the Goddess", by Marija Gimbutas, Harper Collins, 1989
"Alone of All Her Sex", by Marina Warner, Vintage (Random House)1983


   

 

Um problema menor:  O nome daquela lua: Lua Crescente ou lua nova?

Todo mundo chama aquela lua fininha de Crescente. Até o croissant associa forma e nome. Entretanto, aquela é a Lua Nova. É só olhar para o céu dois dias depois  que seu calendário avisar que começou  a fase da Lua Nova. O Quarto Crescente inicia-se quando a lua está já meio cheia.
Entretanto,  mesmo o Aurélio assim a define:
Crescente, segundo o Aurélio: 5a acepção: forma aparente da lua durante o quarto crescente, quando apresenta iluminada menos da metade do seu hemisfério. 7a acepção: Armas e estandarte do antigo império turco.
 

isso coloca novo problema, o uso do Crescente pelos turcos: parece que começaram a usar após a conquista de Constantinopla. Qual a razão?
Chega de problemas!