A VIAGEM DE SANTOS A SÃO PAULO

 

 

Em 1858, um dos muitos viajantes que percorreram o Brasil nessa época relatou sua viagem de Santos a São Paulo. Essa descrição, realizada apenas 3 anos antes da passagem da família Landgraf por ali, deve refletir bem o que eles viram. Segue abaixo uma parte do capítulo do livro  “Viagens pelas províncias de Santa Catarina, Paraná e S. Paulo” , de Robert Avé-Lallemant, publicado em Leipzig em 1859 e em S.Paulo em 1980 (Ed. Itatiaia/USP).

 

    Era 23 de setembro.  No fim do mês eu devia estar no Rio; dispunha, pois, de escasso tempo para uma viagem ao planalto e à capital da Província de São Paulo, a cerca de 11 léguas do porto de Santos.

    Completamente só, saí de Santos pelo meio dia, a cavalo, para a serra.  Forma a região, logo que se tem a cidade pelas costas, uma larga planície, freqüentemente um pântano coberto de arbustos frescos.  Em ambas as margens do caminho se vêem moitas irregulares como um debrum da grande estrado, até bem conservada.  No solo fervilhavam crustáceos rabicurtos, mas dentre o matagal se elevavam lindos jacarandás de flores azuis e outras bignoniáceas, algumas florescendo magnificamente; catléias inacessíveis muitas onagráceas e variadas melastomáceas

    Montado e observando a selvagem mas tão encantador emaranhado de plantas, o observador, se se aprofunda muito na contemplação, é machucado e incomodado pelos burros e mesmo comboios de carretas que passam pela estrada. Só nas estradas da Europa, onde ainda não há estrada de ferro, se vê coisa semelhante. Involuntariamente pensava na estrada de Trieste a Laibach, antes de ser construída a estrada de ferro. A passos lentos arrastam os bois as rangedoras carretas e, a passos curtos, vão os burros debaixo de suas pesadas cargas. O número desses últimos animais sobe a 3.000 por dia.

    Sobre um braço de ligação entre a extremidade superior da Baía de Santos e o mar aberto em São Vicente, ao oeste da barra de Santos propriamente dita, há uma linda ponte de madeira sobre bem fundados pilares de pedra, um dos melhores trabalhos, no gênero, que vi no Brasil. Algumas horas depois encontramos o Cubatão, que desce da serra, com uma sólida ponte de madeira, coberta, onde cada burro paga uma taxa equivalente a quatro “groschen” de prata, o que, num ano, perfaz uma soma importante. Em conseqüência do vivo tráfego, formou-se junto da ponte um lugarejo, que, por enquanto, parece muito insignificante.

Quase como uma azinhaga segue a estrada entre duas colinas e abre-se em seguida em pequena planura, depois da qual se ergue, como gigantesca muralha, a Serra de São Paulo em escarpadas encostas.

Não deve ter sido coisa insignificante abrir e construir a nova estrada que passa por essas íngremes encostas. Seu aclive, bastante suave, permite perfeitamente a utilização de carros; infelizmente, porém, a estrada é tão má, tão cheia de pedras, buracos e erosões que me parece muito perigoso fazer o caminho em sege de posta. Geralmente se vêem, por isso, homens e senhoras a cavalo e só raramente liteiras, conduzidas por dois burros; e, mesmo andando-se a cavalo, é bom prestar atenção ao animal, pois o caminho nem sempre é seguro e multas vezes o lado externo é minado pelas águas que descem.

Mas precisamente essa água dá maravilhoso encanto à viagem na serra. Enquanto para fora se avista a planície com a sua baía e o mar distante como um quadro de rara graça - tanto mais quanto mais se sobe - surgem, do sombrio mato e dos escuros desfiladeiros de pedra, do lado interior do caminho, numerosas fontes e regatos de deliciosa água potável que, cascateando e murmurando, se  precipitam no abismo. Muitas vezes não se pode recusar a essas  águas que brotam da serra o nome de verdadeiras cachoeirinhas; mas em toda a grandiosa paisagem, em que todas as extensões são consideráveis, não se levam em conta essas graciosas cascatinhas, que alguns viajantes mal observam, por mais que elas se esforcem por serem notadas. Entre elas, nas escarpadas paredes da serra, florescem muitos epidendros. Afora isso, floração muito reduzida devido o adiantado da estação.

 

Chegando-se, afinal, ao Alto da Serra, onde a montanha se abre a pique, separando-se em duas paredes que se defrontam descortina-se soberba vista retrospectiva para baixo, para a planície, onde se alternam, em singular variegação, montes, terras e águas. Em frente do viajante, do outro lado do desfiladeiro pedregoso, precipita-se no abismo, de rochedo em rochedo, unia cachoeira estreita, mas de uns cem pés de altura, que, quando a enchem as águas de fortes chuvas, deve ser realmente grandiosa. Quando a vi, estava com pouca água, produzindo, no entanto, belo efeito no formoso cenário de pedras.

Depois do Alto da Serra estende-se um planalto inculto e estéril. Na verdade aqui e, ao que parece, em toda a bacia do Paraná, a gente se sente desorientado quando, vindo do litoral, sobe a bela e pitoresca serra e depois pisa o planalto cinzento, ermo, que quase só produz relva, em cujas colinas ou serras raro se encontra uma floresta, uma plantação. No próprio caminho encontram-se naturalmente, pequenos povoados, geralmente pobres, que têm todos mais ou menos o aspecto de pousada, que vivem quase exclusivamente dos viajantes em trânsito, dos tropeiros e de seus burros.

Num lugar quase deserto fica, aqui, a estalagem de um alemão procedente de Dona Francisca. Recebeu-me muito bem e me pediu que ficasse; o lugar chama-se Rio das Pedras. Mas, para trocar os meus burros, tinha de viajar mais de duas léguas, por mais que me aprouvesse ficar com a família alemã, que conhecia muito bem o meu nome.

Aqui é muito notável a separação das águas. Enquanto o pequeno Rio das Pedras corre para a sua cachoeira, que se precipita do Alto da Serra, para chegar ao oceano pelo caminho mais curto, correm logo adiante alguns veios para se reunirem ao Rio Grande que, a apenas algumas léguas depois do Alto da Serra recebe os regatos e correntes daquele planalto e corre para o Tietê. Em comprido curso para o noroeste, o Tietê deságua, nos limites de Goiás, no Paraná. Este, em longo caminho, corre para o sul e depois, unindo-se com o Paraguai e adiante com o Uruguai, atinge o oceano na direção sudeste. Assim, um braço dágua, depois de áspera luta, em tempo muito breve e na distância de poucas milhas, chega ao mesmo mar que o seu vizinho depois de um longo caminho de multas centenas de mi- lhas, correndo lentamente através de terras distantes.

Em parte alguma, creio eu, um confluente do Paraná se aproxima tanto da borda do Oceano Atlântico como estes peque- nos veios do Rio Grande. Apenas algumas milhas os separam da Bala de Santos.

Fiz alto diante do Rio Grande. Ali se estabeleceu um jovem que me conhecia do Rio de Janeiro e se ocupava, com numerosos burros próprios, do transporte de viajantes e mercadores   entre São Paulo e Santos. Ainda que não tivesse estalagem em sua casa de família, todos os viajantes que se serviam de seus animais encontravam excelente hospedagem em sua casa, que pode alojar uns quarenta viajantes.

Para mim, sozinho, em estrada estrangeira, foi sem dúvida uma agradável surpresa, já ao escurecer, em vez de uma espelunca, entre gente estranha, achar uma bem arranjada casa de família e logo ouvir chamar-me pelo nome. A isso se juntou excelente jantar e um quarto de dormir separado, apesar de já ter chegado muita gente antes de mim.

Cedo, na manhã seguinte, houve diante da casa um pequeno alvoroço, exatamente como nas casas de posta nas pequenas cidades, quando muitas pessoas ali têm diligências extraordinárias. Cada viajante recebeu um novo animal e, em pequenos grupos, partiram para a esquerda ou para a direita, conforme queriam dirigir-se para São Paulo ou para Santos.

O meu novo burro e eu formávamos também um grupo, um quadro de profunda paz e de tranqüilo movimento que só era interrompido quando o animal parava. Isso, porém, era exclusiva culpa minha. Primeiro, eu não tinha esporas e, segundo, não tinha chibata; se o burro nota isso, só anda muito descansadamente. Com algumas correias improvisei um azorrague e assim cheguei tranqüilamente à ponte do Rio Grande e depois a São Bernardo, lugarejo pobre, mas que não deixa de ser notável por uma plantação de chá, a primeira que vi em grande escala.

A começar dali o solo parece melhorar. Na estrada encontram-se várias plantações e com maior freqüência se avista a divina planta do Celeste Império dos enrabichados chineses, dos quais ainda falarei adiante. O meu burro tornou a parar, dando-me largo ensejo de observar a planta estrangeira.

Um cavaleiro que passava com uma jovem senhora me deu o conselho de nunca viajar sem espora e ao dar-me o conselho me chamou pela nome. Era o novo chefe de polícia da Província, senhor Gavião Peixoto e tomei o firme propósito de seguir o seu conselho, embora, para isso, não tivesse esporas.

Afinal, de longe, avistei São Paulo, muito simples, numa colina sobre uma vasta depressão. Meia légua antes dela se passa pelo célebre Campo do Ipiranga, no qual, há trinta e seis anos, o Imperador Pedro 1 proclamou a independência do Brasil. Aqui se elevam da. terra pontas de vigas que outrora formavam um pavilhão de festa. Nenhum monumento orna o memorável sitio.

Cheguei a São Paulo ao meio-dia. Com um bom animal pode-se fazer comodamente o percurso de Santos a São Paulo num dia e até muito facilmente, trocando-se a cavalgadura em casa do senhor Melo, no Rio Grande. Com a troca do animal pode-se concluir muito bem a pequena viagem em dez horas.

Que devo dizer da cidade? Muita coisa me contaram da elegância das ruas, da limpeza das casas, do esplendor das Igrejas e certa aparência aristocrática da população em geral, muita coisa que, a vários respeitos, não devia ver enganosamente.

Algumas ruas, um ou outro bairro bonitos e às vezes até magníficos; em alguns lugares, fileiras de casas assobradadas e, além disso, bom empedramento com calçadas, mas em geral ruas estreitas e a cidade absolutamente irregular.

As igrejas que vi são bonitas, algumas ornadas, no entanto nenhuma me causou grande impressão. A Faculdade de Direito dá uma boa impressão e parece-me o mais notável de todos os edifícios da cidade.

O palácio do Presidente era antes um colégio eclesiástico e compreende os dois lados de uma praça onde fica o hotel em que me hospedei. Tudo, nessa praça, parece monacalmente velho e impressão semelhante me deu São Paulo. Ali cheira a Témis e a velho jesuitismo; o primeiro odor aumenta, pois a Facul- dade de Direito tem 500 a 600 alunos, cuja vida, naturalmente, deve diferir bastante da vida dos estudantes alemães. A Igreja, porém, espera uma regeneração de um novo seminário em que são professores católicos sérios, sardos e franceses. Conheci dois deles, naturezas zelosas e exaltadas, a quem de coração desejo felicidade para a continuação de sua pesada tarefa no meio do niilismo formalístico católico.

 

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Lamentavelmente em São Paulo não tive a felicidade de poder apresentar-me ao senhor Presidente Fernandes Torres; por outro lado conheci dois pseudopresidentes e podia contar uma engenhosa anedota da repartição provincial. Pouco faltou que me agastasse.

Mas, em vez de levar qualquer coisa a mal, em 28 de setembro, muito contente, montei um matungo que aluguei, e saí, mui pouco satisfeito com a Cidade de São Paulo e suas elogiadas magnificências, depois que, ainda na tarde anterior, eu visitara o Tietê, que fica apenas a meia hora de distância da cidade.

Em São Paulo o Tietê já é majestoso e senhoril e já aqui ofereceria belas possibilidades à navegação se, nove léguas abaixo da Capital, não interrompesse o seu curso um salto de considerável dimensão. Em São Paulo construiu-se sobre ele uma longa ponte de madeira que, porém, está exposta a muitos perigos com as cheias e terríveis inundações do rio.

Em 28 de setembro fui ao Rio das Pedras e ao meio-dia do dia seguinte cheguei a Santos, onde acabava de aportar um navio hamburguês com uns 40 colonos de parceria - prova de que na Alemanha o sistema de parceria ainda não é bastante conhecido com toda a sua inconveniência e continua a haver indignos impostores que persuadem pessoas ignorantes a acei- tarem tais contratos.

Em 1o de outubro, às 12 horas do dia, fui para bordo do vapor de hélice "Josephine" e parti nele com tempo maravilhoso e mar um pouco encapelado.